O MEU SER IMPERFEITO
Não sei porque voltei ao computador.
Já não tinha terminado a matéria do Sófocles?
Ela deve ter ficado puta da vida.
Mas como é que a distinta resolve me esperar sem calcinha?
Abro a porta do quarto, e ela lá...
Estendida de bruços sobre a cama desarrumada.
Um belo rabo, admito.
Mas sem calcinha?
Como uma mulher pode receber um homem sem a calcinha?
Só porque eu falei que sou louco por bundas?
A calcinha é tudo.
Ou, pelo menos, deve fazer parte desse tudo.
Uma mulher sem calcinha é como um quadro sem moldura.
Uma tela para ser manuseada ou transportada.
Para apreciarmos tem que estar emoldurada.
Mesmo quando maravilhosa, ainda precisa de moldura.
Brochei.
Brochei na hora.
Logo vieram os malditos números.
Assaltando o meu cérebro doentio.
Dei meia volta e saí devagarzinho.
Deve ter mesmo ficado puta da vida.
Que importa?
Agora tenho é que me livrar dos números.
E a maçaneta horizontal da porta do banheiro me faz ver o traço divisor de um fracionário.
Divido alguns que não possuem sobras.
Odeio quando sobra alguma coisa na divisão. Dá-me o aspecto de impureza.
O rolo do papel-higiênico em pé sobre a pia é um zero, mas não vejo como utilizá-lo em nada.
Os zeros não servem para nada.
Por que faz isso comigo, meu Deus?
A torneira da pia goteja e calculo a possível vazão d'água em uma hora de desperdício.
Já nem sei porque entrei no banheiro.
Volto ao computador e quase urino nas calças.
Será que ela ainda está me esperando?
Vai esperar pra caralho.
Já estou fazendo sexo com Euclides e Fermat.
Uma verdadeira suruba de teoremas, postulados e equações de todos os graus, sobre uma cama de forma algébrica perfeitamente desenhada.
A soma do quadrado dos cacetes não cabem na vagina da minha musa.
Como é que eu não ia brochar?
Estava em ponto de bala e a desgraçada lá, me esperando sem calcinha.
O que será que fez com ela...
Deve ter jogado em algum canto, mesmo.
Não deve ter nenhuma consideração por essa peça íntima.
Que jamais deveria ser íntima.
Deveria ser sempre compartilhada.
Mas não faz mal.
A bunda nem era tão bela assim.
Apenas volumosa e volume não é tudo.
Se fosse, elefante passava o dia todo enrabando sua fêmea.
Não faz mesmo muito mal.
Se ainda fosse a bunda da Luciana...
Se fosse a bunda da Luciana eu teria lambido até os pés da cama, antes de tocá-la.
Eu sempre encontro todos os sabores na bunda da Luciana.
Ela toda é como uma imensa salada de frutas.
Aprecio os seios como se fossem pêssegos frescos.
O ventre é todo manga e eu adoro mangas.
Se os deuses também possuem o hábito de almoçar, a sobremesa deve ser mangas.
A boca é como mangaba figos as vezes. E da xoxota desfilam os exóticos paladares do abiu e beribá, tão apreciados pelos nativos do Purus, Madeira ou Solimões.
Ela é mesmo toda tutti-fruti.
E nunca me espera sem calcinha.
O teclado do computador exibe números por todos os lados.
Deus manifestando-se por números.
Atrás de mim as minhas sombras.
Sombras de mim por toda a sala.
Sombras de mim se espalham por todos os lados.
Amanhã vou trocar a posição do abajur.
Agora vem a garota austríaca raptada.
Dormindo no quarto subterrâneo.
Toda a terra do mundo em cima dela, e ele descendo as escadas.
Quanto mais sinto toda a cena, mais creio que não houve mesmo apenas um simples rapto.
Mas ninguém nada percebeu.
A Psicologia não percebeu.
A Psicologia está perdida e talvez a síndrome de Estocolmo não exista.
A Psicologia pode estar errada.
Suzane von Richthofen matou os pais e a mãe era psicóloga.
Quando aquela bunda se for pela manhã, quero ficar três dias sem ver ninguém.
Vou me exorcizar.
Antes prego um aviso na cabeceira da cama.
PROIBIDO MULHER DEITAR SEM CALCINHA.
Minha mente desordenada.
Onze ao quadrado é cento e vinte um.
Cento e vinte um é número primo.
A soma de todos os números que compõem a seqüência de cento e vinte um é sete mil trezentos e oitenta e um, que só é divisível por onze. Mas isso não deve querer me dizer nada.
Eu saberia como pegar a Carla Cepollina na mentira.
Eles em nada usufruíram os telefonemas e, no entanto, a chave talvez estivesse ali.
Os telefonemas.
A comparação das chamadas nos últimos finais de semana.
Ficaria tudo perfeitamente claro, embora talvez não pudesse ser usado como prova no julgamento.
Seria prova circunstancial.
Mas as circunstâncias são tudo.
Analisar o comportamento de uma alma feminina aos sábados.
As mulheres mudam um pouco aos sábados.
O desejo aumenta um pouco aos sábados.
Os telefonemas de todos os sábados.
Comparar telefonemas e comportamentos.
Ainda posso me complicar com isso tudo.
Tudo é perigoso.
O amor é um perigo.
Eu amo os números primos.
E eles são meu maior perigo.
Eu queria ter o deus de Nietzsche.
O deus que nos acomete.
Não o deus onipotente.
Não o deus onipresente.
Estou todos os dias a brigar com o meu.
Pela manhã, acordo reclamando Dele ter deixado as criancinhas na rua sob o frio da madrugada.
As mulheres que sofreram abusos ou foram esbofeteadas pelos seus amantes.
Ter deixado o Collor, Maluf e Clodovil se elegerem.
Tudo obra Dele.
Mas ao cair da tarde, quando vejo o sol se por pela janela entreaberta, meu espírito conciliador e vulnerável ao belo, é corrompido.
Meu tom de revolta a Ele fica mais ameno.
E se a noite que entra trouxer consigo Luciana e todos os sabores que emanam de seu corpo, então volto a ser o humilde, extasiado, respeitoso e obediente servo do Criador.
Sou todo admiração por Ele.
Maravilhado pelo sensual sabor da jabuticaba.
Não tenho mesmo o deus de Nietzsche.
Sinto os números me abandonando agora.
Já quase não os vejo.
É um grande alívio.
Só estou pensando em Luciana.
Nas suas sinuosidades.
Outro dia ela quase me surra.
Eu gozo e logo pergunto a quanto fechou o dólar na Argentina.
Meu ser desprezível.
Meu ser disforme.
Incapaz de se revelar nos momentos certos.
O meu ser disperso.
O meu ser disperso, doente e desregrado.
O meu ser descabido.
O meu ser.