SOMBRAS SOMENTE

06 novembro, 2006
  O ARMAGEDON COMO EU SONHEI ESSA NOITE

Abusei mesmo na feijoada. Pudera, a vizinha tem uma mão...
E todo sábado é a mesma coisa. É só dar dez horas da manhã, e a campainha toca.
_ Você vem almoçar comigo? Hoje vou fazer uma...
A recusa é difícil e quase sempre extrapolo.
Dessa vez, ela ainda teve a crueldade, depois de meus agradecimentos, em oferecer a 'sobrinha' para eu levar para a janta.
_ Assim você não precisa sair. _ com aquela voz manhosa.
Eram onze e trinta da noite, quando coloquei a 'sobrinha' no microondas. Cinqüenta segundos depois, ataquei.
Findo o 'lanchinho', fiquei andando da cozinha à sala, da sala à cozinha. Isso equivale a onze passos e trezentos e dezoito tacos de madeira fixados no chão do corredor.
Resolvo então me deitar.
Derramo um pouco de leite na vasilha do Austregésilo, meu gato, e vou para o quarto.
Ligo o som e boto “Cavalgada das Valquírias”.
Odeio Wagner.
Poucas vezes a música foi tão prepotente quanto em Wagner.
Não era à toa que Hitler o admirava.
Mas aquela obra-prima do Copolla, “Apocalipse Now”, me fez gostar de “Cavalgada das Valquírias”. O barulho dos helicópteros, a fotografia de Vittorio Storaro e o brilhante desempenho de Robert Duvall, me fizeram reconsiderar essa composição.
Deitado, vejo o tempo desfazendo-se em médias harmônicas.
Pensamentos e números acompanham a música enaltecedora e me entregam aos braços de Morfeu.
Estou caminhando em nuvens e campos.
Hipnos aos poucos vai me conduzindo a lugares distantes e visões estranhas.
Ventos gélidos trespassam meu espírito.
Sons longínquos aguçam meus sentidos.
Mais nuvens e campos.
E uma multidão de cabeças incolores surge um pouco mais adiante.
Todas parecem seguir uma mesma direção.
Mais sons e vultos surgem agora em minha retaguarda.
Sinto-me compelido a acompanhar uma marcha que se torna mais frenética entre esdrúxulas formas.
Reconheço barulho de trotes.
Cavaleiros atravessam por mim num galope desenfreado.
Os animais parecem dispor de cascos alados.
Por todos os lados surgem novas aglomerações de vultos.
Todos se apresentam como espectros.
Parecem ser talhadas ao gelo de tão incolores.
Sinto-me cercado agora.
Espremido numa grande massa esfumaçada que caminha nervosamente e em pressa ainda inexplicável.
A marcha é flutuante.
Meu andar é deslizante.
Almas e mais almas se avolumam de forma assustadora e vão tomando novas cores, mas todas essas cores são brancas.
Corpos cobertos por vestes brancas.
A verdejante planície que se aproxima é branca.
Rapidamente é ultrapassada.
Adentramos então, num imenso vale branco.
Cavalos esbranquiçados à dianteira.
E o que é tudo inexplicável vai lentamente se revelando de forma limpa e alva.
O imponente monte ao fundo faz-me reconhecer o vale de Jeosafá.
Calafrios me assaltam incomodamente.
São os campos do Megiddo.
É a congregação divina para o juízo final.
É o momento da decisão.
É o Armagedon.
Subitamente espalham-se todos para todos os lados.
Reconheço os vultos que orientam os desorientados.
São os querubins. Os anjos inviolados.
Abrindo seus braços vão definindo os espaços.
Um pouco mais à frente reconheço os hititas em seus temidos carros de guerra, avançando impiedosamente sobre os egípcios.
Volto meu olhar ao nordeste e vejo os romanos se batendo com os visigodos.
Caldeus, asírios, sumérios, turdetanos, espartanos, satarqueus...
Povos de todas as épocas e de todos os lugares.
Luzem espadas, lanças, alabardas, machados vibrantes no ar.
Flechas sibilam por todos os ares.
Caminho impune entre corpos despedaçados, braços desarticulados, cabeças rolantes.
Gritaria pavorosa e inigualável.
Absorvido pelo terror, quase não percebo a mão pousada sobre meu ombro.
_ Você deve vir por aqui, Sombras. _ recomenda-me o querubim que interrompe meu caminhar desorientado.
E seguindo-o por outra trilha, vislumbro o Tempo humanamente inalcançável.
O apogeu do Crescente Fértil, a cultura egéia, a Idade das Trevas... E entro no Contemporâneo.
Criminosos de colarinhos brancos empunham ‘magnuns’ e ‘taurus’ platinadas.
Tanques blindados circulam entre brancos espigões.
Uma multidão maltrapilha avança desenfreadamante para o embate.
Coquetéis ‘molotov’ voam por todos os lados.
Surgem mineiros, gaúchos, capixabas...
Aos poucos vou reconhecendo alguns patrícios renomados.
_ Aguarde aqui até ser chamado. _ ordena o querubim antes de se afastar.
Num canto desprovido de ângulos, observo incólume a primeira arremetida de uma grande e sedenta massa.
Zumbidos de projéteis ultra-sônicos ou simples paralelepípedos arremessados que estranhamente me são inatingíveis.
Lula, cercado por um bando de tucanos, acaba de perder mais um dedo.
Dirceu, Palocci, Genoíno e outros correm em seu auxílio.
Freud Godoy, o analista de riscos, tenta nervosamente se explicar, mas seu superior está irredutível.
_ Você é um analista de merda. Um analista de merda. _ esbraveja Lula. _ Olha o caso do ‘dossiê’. Viu a cagada?
Em outra posição reúnem-se os crentes do ‘Fome Zero’. Esfomeados, vibram foices e terçados para o alto.
A turma do ‘valerioduto’ tenta negociar sua peleja. Dólares se esparramam pelo chão. Malufistas se atiram às cédulas, lamentando o desperdício.
Ainda não se deram contas do local em que estão.
A carnificina se torna ainda mais brutal.
Lula, que acaba de perder mais dois dedos, chama Berzoini e segreda-lhe ao ouvido: _ Tá me atacando uma diarréia daquelas. Eu falei para a Marisa não comprar Pitu. Por acaso você trouxe papel-higiênico?
Mas uma nova onda beligerante, agora dos aposentados, os engolfa e o interrompe.
Tem que se bater com três deles simultaneamente.
Ao ter que desviar com a mão a lâmina de um punhal que busca cravar-lhe o peito... Lá se vai mais um dedo.
A tropa de choque prontamente lhe acode.
_ Matem todos. Matem todos. _ grita enfurecido. _ Só não matem aquele barrigudinho ali do canto.
Nesse canto sem ângulos, vejo um homem de estatura baixa e ventre proeminente, que, trêmulo, procura não ser arremessado na peleja.
_ Você deve subir agora. _ ordena-me o querubim que, num passe de mágica, se posta à minha frente.
Sou conduzido por uma infinita escada sem degraus.
Os horrores dos combates humanos abaixo de mim, vão se afastando lentamente.
Uma névoa acompanha minha subida e logo adentro num resplandecente e infinito salão feito somente de nuvens.
Serafins andam por todos os lados. Imediatamente vislumbro alguns santos. Sinto minha alma desfalecer quando passo pelo filho de Pedro Bernardonne, que me lança seu olhar humilde e penetrante.
Adiante há uma fila de pecadores com semblantes cabisbaixos, buscando uma posição para a descida de outra escada que sobressai ao fundo do nada.
Aproximo-me de um ambiente dividido sem paredes e sou anunciado.
_ Esse é o Sombras, Onisapientíssimo. _ apresenta-me o vulto que logo reconheço ser Santo Agostinho.
Num leve desfalecimento, sinto o chão de nuvens desapoiando meu corpo especioso.
Estou diante Dele.
O Deus todo poderoso.
É o meu julgamento final.
_ Se aprochegue, meu jovem. _ ordena o Sumo Onisapientíssimo.
Percebo, o que me causa grande alívio, que não é o bicho-papão como se acredita.
Esparramado sobre um trono enevoado, barba entremeada a uma vasta cabeleira incolor, parece ser mesmo o tipo bonachão.
_ O que há contra ele, Agostinho. _ indaga ao santo homem, cofiando os espessos fios da barba.
_ Bem, Onisapientíssimo. Podemos começar pelas suas inconstâncias, durante a juventude, nas crenças divinas.
_ Caramba, Agostinho! _ reclama num tom altivo _ Sabe quantos você já me apresentou com esse problema? Já deve saber como julgo esse delito. Passe para outro pecado.
_ Bom... _ dando uma olhadinha num imenso bloco de folhas brancas _ Passou a vida a invejar Fernando Pessoa. _ concluiu.
_ Pera aí, isso não. _ ousei me defender _ Como é que alguém podia não ter inveja do Pessoa. Você viu como o homem escrevia? Na verdade ele nem escrevia, ele cantava. As palavras eram como música. Não se lia o desgraçado, sentia-se todo ele.
_O homem era tão bom mesmo? _ indagou Deus ao santo.
_ Bem, Onisapientíssimo. Era isso tudo sim. E se me permite a insolência _ completou a meu favor _ aconselho mesmo a leitura de suas obras.
Ufa! Suspirei.
_ Você concordando, não vejo porque não pularmos essa questão. O que mais temos contra o Sombras? _ inquiriu divinamente.
_ Tenho uma matéria bastante afrontosa, escrita de forma vulgar e sem muita consistência, Onisapientíssimo.
_ Que matéria é essa, Agostinho? _ indagou, olhando-me de forma penetrante.
_ Bem... A matéria... Herr... O título... _ gaguejou, meio encabulado, Santo Agostinho _ O título é “As possíveis inferências que acometem o ego e o superego, quanto a sentimentos que ocasionam as perdas de valores absolutos e fundamentais no entendimento do id, sobrepondo-se a questões sobre a Lógica e residentes no entendimento da Ética”.
_ Quer me traduzir essa merda, Agostinho? _ esbravejou irritado, o Divino.
_ Mas eu não publiquei no meu blog, não. _ antecipei-me de imediato.
Deus me olhou de soslaio.
_ Bem, Onisapientíssimo. _ tentou explicar _ Pelo que pude entender, o texto procura demonstrar que sentimentos nobres como o Amor, talvez não estejam fundamentados em conceitos lógicos e que, portanto não deveriam ser...
_ Ele postou essa porcaria no blog, ou não postou? _ perguntou Deus, ainda visivelmente irritado.
_ Não postou, Onisapientíssimo. _ respondeu Santo Agostinho.
_ Então pulemos essa joça. O que mais temos contra o Sombras?
_ A questão das calcinhas, Onisapientíssimo. _ apresentou o santo.
Agora fudeu-se.
Dessa não vou ter como escapar.
_ O que tem as calcinhas, Agostinho?
_ Aos doze anos, Onisapientíssino, ele revirava a cômoda da madrasta para se deliciar pecaminosamente no manuseio e absorção dos aromas das calcinhas que...
_ Chega, Agostinho. Não me fale mais nada _ interrompeu bruscamente _ Manda esse pervertido lá para baixo.
Findou-se a inquisição.
Fazer o que?
Havia defesa?
E lá fui eu guiado pelo mesmo Serafim que me trouxera, à escada que me levava de volta ao juízo final.
Cabisbaixo.
Manso que nem um peru embriagado.
Descido os degraus me vi novamente ao meio da carnificina.
Lula, que tinha acabado de perder mais três dedos, agarrou o papel-higiênico que Berzoini lhe trouxera e avisou que ia para trás de uma moita branca que se encontrava bem próxima.
_ Matem todos. Matem todos. _ exigiu em berros antes da retirada _ Só não matem aquele barrigudinho ali do canto.
O barrigudinho ainda estava lá, tremendo de medo.
Subitamente um bando de fãs da Vanessa de Oliveira corre em minha direção.
Percebi então que agora não era mais um simples espectador.
Pra que fui criticar a Vanessa? Olha a merda, agora.
Acometo em fuga espavorida.
Rodeio por vários campos de batalhas diferentes, na busca de despistar os fãs da distinta.
Tucanos enfrentam petistas.
Petistas combatem aposentados.
Aposentados aniquilam parlamentares.
Corpos despedaçados por todos os lados.
Um terror sem igual.
Em minha corrida desenfreada, tenho tempo de ver mulheres casadas tentando estraçalhar Bruna Surfistinha.
_ Uma foto para o site. Tirem uma foto para o site. _ grita seu editor literário maravilhado com a cena, e com a propaganda resultante.
Percorro em voltas e por várias vezes o campo todo, até certificar-me que despistei os fãs da Vanessa.
Encontro-me novamente no bolsão em que Lula combate.
Ainda está atrás da moita se esvaindo numa diarréia interminável.
Berzoini solicita novas ordens.
_ Mate todos. Mate todos, companheiro. _ insiste ferozmente _ Só não mate aquele gordinho lá do canto.
_ O companheiro Lula quer me explicar o motivo de não querer ver esse gordinho morto? _ pergunta curioso, Berzoini.
_ Companheiro, veja minhas mãos. _ e exibe agora dois punhos com apenas um dedo. Inverteu-se a quantidade _ Como é que posso segurar o papel-higiênico?Deixa o gordinho pra limpar meu cu.
Os fãs da Vanessa encontram-me novamente.
Parto em nova fuga alucinada.
Novas paragens, novas batalhas.
Vejo a Gretchen e seu desatual marido, acuados por um sedento bando de moralistas.
_ Não era filme pornô, era erótico _ ela grita _ Era erótico _ tentando inutilmente se defender, mas parecem não aceitar muito o argumento.
Atravesso vários campos enlameados de sangue branco. Rodeio bolsões e desatentamente saio de meu tempo.
Retrocedo às disputas.
Invado guerras antigas, pendências longínquas, até me ver em pleno Coliseu.
Estou no meio desse deslumbrante anfiteatro, construído com mármore, ladrilho e pedra travertina, rodeado por colunas dos três estilos.
Mas não me encontro como assistente. Vejo-me pronto a ser assistido.
Claramente então, meu castigo é revelado ao meu ser.
Os romanos que lotam a arquibancada se agitam freneticamente. Latinos vocábulos insultuosos são lançados sobre mim.
_ Soltem os leões. _ ordena o centurião aos escravos pagãos.
Nenhum cristão está comigo.
Estou só e sozinho vou ser devorado pelos felinos.
Ao som das grades sendo levantadas, imensos espécimes aproximam-se.
Rugidos aterradores.
O maior dentre eles corre em minha direção e pula em meu peito, jogando-me ao chão.
Montado sobre meu corpo caído e com as garras das patas enfiadas na carne de meus ombros, uma enorme boca se abre com mandíbulas cobertas de presas amarelentas e baba repugnante.
O bafo demoníaco invade minhas narinas, e à medida que a boca se aproxima para arrancar-me a cabeça, com o coração descompassado, ouço seu pavoroso rugir: _ Miau!
Acordo com meu gato Austregésilo em cima de meu peito, lambendo meus lábios.
Por alguns segundos fico totalmente imóvel.
O bichano insiste no cafuné.
Apeteceu-me esganá-lo.
Passo as mãos pela cabeça, para me certificar que ainda está no lugar, e levanto ainda meio zonzo.
O desgraçado deve estar com fome.
Abro a janela do quarto e o sol se exibe que nem uma puta recostada a um poste de esquina movimentada.
Fecho de volta e calço as sandálias enquanto o bichano se enrosca em meu tornozelo.
Vou até a cozinha.
Isso equivale a quatro passos e meio. Ou cento e vinte sete tacos de madeira fixados ao chão.
Eu nunca conto os repartidos que completam as sobras que circundam as paredes e os cantos.
Despejo leite na vasilha do infeliz e sento-me no chão.
O sonho ainda desconforta meu espírito.
Acho que não vou ter um bom domingo.
Maldita feijoada.
 
Comments:
Quer saber?
Acho que sua vida tá precisando de merdas novas. Você está gastando seu talento com merdas antigas Lullas, Mallufs, Berzoinis. Já que você tem talento, convença seu bichano a ficar na janela esperando e contando as prostitutas da "Politka" nacional. Deste modo, aquela maluquice toda de ter que ficar escrevendo - quando deveria estar dormindo - para não perder o cruento banquete de uns e outros, antes de descrever sua própria autofagia - impunemente abstraída do seu sonho e sono - não terminará na boca do Leão. Aliás, que vacilo , hein?! Logo Leão! Este bicho é um impostor. Não tem critério, come os que ganha menos, tanto quanto finge correr atrás dos que ganham mais. Portanto, não vá temer em sonho, aquele que,diariamente, já te come o salário! Ah! Tem pouca madeira na sua casa para quando chegar a hora de reascender a fogueira. Não mais da "Inquisição", mas a das "Vaidades". Pô! já são 3h da madruga. Vou dormir segurando o "falo", porque o que eu sonho não falo! E se o seu gato vier ao meu sonho, não quero surpresas... risos! Não precisa se trancar, basta escrever. Suas idéias não voltarão, pois serão roubadas por algum moralista de plantão. Eles, ao contrário da gente, nunca dormem! Abração!
 
Sombras
Vc me surprende sempre que aqui venho.Obrigada
 
Aê, Sombra! Tem um versículo na Bíblia que diz assim: "Do muito comer, vêm os sonhos". (tradução livre). Vou procurar o versículo certinho e um dia te mandarei.
Em todo caso, pensei que vc estivesse meio deprê por motivos existenciais, e agora descubro que foi a marvada feijoada. Em todo caso caso, menos mal: Uma boa feijoada vale até um pesadelo né? Preferência nacional!Ô coisa boa!
Big abraço. Você é hilário.
 
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